Firme na leitura de Anna Karenina (37% já foram, segundo o Kindle), com boas perspectivas (graças às férias) de terminar antes da estreia do filme (trailer) em 15/2.
Entre muitas alegrias na leitura, topei hoje com o sensacional capítulo 14 da terceira parte (são oito partes...), em que Karenin escreve uma carta à esposa com sua "solução" para a questão da infidelidade de Anna.
Após escrever essa carta tão dramática e importante, Karenina divaga e passa a pensar em problemas de seutrabalho no governo, ocasião para Tolstói descrever em minúcias os emaranhados da burocracia da época, e a satisfação de Karenin com tais superficialidades.
Podia ter sido escrito anteontem:
"Seus olhos estavam no livro, mas ele estava pensando em outra coisa. Não na sua esposa, mas em uma questão que surgira recentemente em sua atividade oficial. [...] Sentia que agora enxergava mais profundamente que nunca a questão, e que uma ideia perfeita (podia dizê-lo sem se gabar) lhe ocorria, a qual iria desembaraçar o problema, fazê-lo progredir na carreira, aborrecer seus inimigos e portanto ser de grande valor para o Estado.
[...] A irrigação da província de Zaraysk começara com o antecessor do antecessor de Karenin. Uma grande soma de dinheiro havia sido gasta improdutivamente na questão, e era evidente que o projeto não daria em nada. Quando Karenin assumiu o cargo, percebeu logo e quis suspender o projeto, mas não estava suficientemente seguro no cargo. Depois, ocupou-se de outras coisas e simplesmente esqueceu a questão. Como todas as coisas desse tipo, o caso continuou por si só, por inércia.
[...] Karenin considerava desonesto que outro departamento chamasse a atenção do problema, mas uma vez que o desafio fora lançado, ele iria aceitá-lo bravamente, ordenando a indicação de um comitê para investigar e relatar o trabalho do Comitê de Irrigação da Província de Zaraysk, sem no entanto ceder um milímetro aos cavalheiros que haviam levantado a questão. Ao mesmo tempo, ele exigiria a indicação de um comitê para investigar a atuação do comitê responsável pela organização das outras raças na província, que fora motivo de conflito entre ele e outros ministros.
[...] A questão tinha ficado adormecida, mas agora Karenin pretendia exigir, primeiro, a formação de uma nova comissão para investigar in loco as condições desses povos; em segundo lugar, se tais condições se provassem como pareciam ser de acordo com os relatórios, que uma outra comissão científica fosse nomeada para estudar as causas das condições deploráveis dessas raças, nos seguintes aspectos: (a) políticos, (b) administrativos, (c) econômicos, (d) etnográficos, (e) materiais e (f) religiosos; em terceiro lugar, a obtenção de informações junto ao comitê responsável quanto às providências tomadas nos últimos dez anos para evitar o estado de coisas atual; e em quarto lugar, que o departamento em questão esclarecesse porque agira em contradição direta com os princípios da constituição e lei orgânica (Vol. ?, Art. 18 e nota de rodapé ao Art. 38), conforme mencionado nos expedientes submetidos ao Comitê com os números 17015 e 18308, de 5 de dezembro de 1863 e 7 de junho de 1864.
Um rubor de animação inundou o rosto de Karenin à medida em que escrevia rapidamente um resumo dessas ideias. Tendo coberto uma folha inteira, levantou-se, soou a campainha e mandou uma mensagem ao seu chefe de gabinete, pedindo algumas referências que precisava verificar.
Depois de andar de lá para cá no escritório, olhou novamente o retrato da esposa, franziu o rosto e sorriu com desdém. Retomou a leitura do livro, novamente interessado. Recolheu-se às onze, e, enquanto se deitava, ao se lembrar do que ocorrera com a esposa, aquilo não se lhe pintava mais com cores tão sombrias."